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"A casa de tijolos baianos" 

(Augusto Moraes)

      Bem que eu desconfiava de tudo, quando entrei de morada para aquela casinha com meu pai. Era uma casinha bem da mixuruca, mas mesmo assim ele se vangloriava do bem imóvel como se fosse uma mansão. Depois que nos mudamos para lá, era nos exigido que chamássemos a ele por Senhor Hernandes. Viemos com a familiarada toda. Incluo, quando digo familiarada, a sua esposa (minha madrasta Nanci) e a irmã de Nanci que se dizia minha tia e sorrindo apertava minhas bochechas. Esta última chamava-se Nanci Clotilde, estava ali de intrometida. Havia se separado do marido recentemente e acabou mendigando a nós um local para abrigar a si e sua filhinha Clotilde. Clotildinha sim eu considerava prima. Era do tipo de menina perfeitinha, bonitinha e calada. Por lá também foi morar meu avô, Hélio Hernandes como eu. Também minha avó, Helena Hernandes. Minha avó era do tipo tradicional de avó: fazia tricô, crochê, ponto e cruz e reclamava do seu casamento.

      A casa tinha três cômodos e, os últimos a ir dormir, revezavam entre a sala e a cozinha. Normalmente os que trabalhavam podiam dormir nos quartos durante os finais de semana, pois durante a semana só era permitido que dormissem lá o meu pai e sua mulher. Os bifes que sobravam do almoço também tomavam fim nos pratos destes. Tudo era bastante democrático e ao mesmo tempo tradicional, sobretudo, quem mandava e desmandava, era mesmo o Senhor Hernandes. Só ele era conhecedor das regras e só ele sabia o segredo que a casa escondia. Não sei exatamente como, mas parecia até que profetizava a catástrofe que aconteceria.

      Era sábado e o sino das sete horas soava desesperado do topo da igrejinha ao final da rua. Como se fosse por obrigação, as mulheres corriam para fora curiar enquanto os homens se movimentavam inquietos de um cômodo ao outro. Faziam círculos com os olhos pela casa como se procurassem algo, às vezes paravam para olhar abismados nos olhos do Senhor Hernandes.  Meu pai, sentado em sua poltrona reclinável, fazia gestos de calma e indiferença. Tranquilamente nos reuniu no centro da sala para que pudesse, enfim, nos anunciar sua profecia. Hélio Hernandes sentiu vontade de abraçar a vovó Helena, e enquanto a abraçava e sussurrava-a um segredo, deu falta de Nanci Clotilde. Quando quis perguntar dela para Nanci, notou que esta também não estava. Meu pai rudemente cortando o assunto foi dizendo:

      - Deus as levou quando foram curiar na rua!

      Imediatamente tive ordens de trancar as portas e as janelas. Fomos ali, prisioneiros por vontade própria, pois, lá fora Deus estava à solta, festejando sua liberdade divina e fazendo o que bem entendia de cada um dos pobres pecadores. Com sua fúria e rebeldia, soprava tufões e ventanias que destruíam os mais altos edifícios. Ele ria e irradiava sua luz. Fazia telepaticamente com que as almas das mais diferentes espécies batessem em nossa porta e nos solicitasse esclarecimentos. Pela cidade os vermes consumiam dos armazéns e vestiam seus trajes de gala; os ovíparos corriam para amar, sofrer e luxuriar entre todas as espécies possíveis; os carnívoros se embebedavam de vinho e pão; os golfinhos gostavam de estuprar minha avó. Alguns a faziam gozar e durante o orgasmo ela resmungava o porquê meu avô não a satisfazia assim.

      Senhor Hernandes, com uma marreta demolia friamente a casinha. Obrigou a nós três restantes, espera-lo dentro de um baú que ele mesmo havia desenterrado do quintal. Minha avó já não estava mais conosco, havia se casado novamente com um rinoceronte simpático de Caldas Novas que vinha frequentando a casa há algum tempo. Meu avô dava graças a Deus. Ao fim da demolição, meu pai deixou a marreta num canto e separou cerca de cento e vinte tijolos baianos. Os colocou dentro de uma sacola plástica de supermercado e amarrou-a bem pelas alças. Abriu o baú onde estávamos e jogou lá dentro todos os móveis, acessórios e utensílios, para que pudéssemos nos aconchegar por tempo indeterminado. Deu cuidadosamente em minhas mãos a sacola com os tijolos. Sussurrou-me algumas palavras sobre barras de ouro nos tijolos. Neste mesmo momento, Deus o alcançou e o puxou pelo colarinho o arremessando diretamente ao mar para que morresse afogado.

Deus não gostava de ter que matar as pessoas, então, a única coisa que poderia fazer seria que as deixassem morrer. Meu avô, percebendo a oportunidade, ficou a desmentir meu pai dizendo que tijolo baiano era tijolo baiano e pronto. Abraçava-os entre as pernas a fim de protegê-los de mim. O sino soou por anos e, por anos, morávamos escondidos no baú. Já havíamos comido tudo que podíamos; desde os colchões e as camas; as roupas e o guarda roupa; os pentes e a penteadeira. Contudo, os cupins nos ajudavam na mastigação da madeira e as traças na digestão dos tecidos. Infelizmente nós não tínhamos ou não podíamos ter espelhos no novo lar.

      Meu avô fedia e estava duro como um morto em decomposição. Parecia dormir eternamente, porém suas pernas ainda abraçavam e contornavam os tijolos de tal forma que, não conseguíamos sequer tirar um da sacola para nos alimentar. Tínhamos tanta fome que eu como homem tomei uma decisão irrevogável: abrir o baú. Primeiro olhei pela fresta e pude observar a cidadezinha em ruínas. Havia somente entulho e um silêncio indescritível. Silêncio esse, que nunca existiu na história, desde a criação do universo. No fim da rua a igrejinha estava intacta. Deixei Clotildinha de olho no vovô enquanto eu subiria até lá para pedir alimento. A porta da igrejinha estava por todo o tempo aberta. O letreiro é que estava apagado. Ao fundo do corredor estava o padre. Parecia mais jovem que da última vez que o tinha visto. Chamou-me:

      - Venha se confessar, meu filho.

      Fui, porém só pude confessá-lo minha fome. O padre, indignado, perguntou-me:

      - Não há o que comer em sua casa menino?

      - Infelizmente já comemos tudo o que tínhamos de madeira e tecido...

      - Não tens espelho?

      - Não senhor padre, não temos espelhos. Tentei comer um dos tijolos, mas meu avô não os quer largar e os prende por entre as suas pernas.

      - Meu caro menino... És Hélio Hernandes?

      Respondi que sim, foi quando, o sino voltou a bater sete horas de um sábado. Num assovio maligno de Deus, este possuiu meu corpo. Desci a rua com passos impossíveis até que cheguei ao baú. Entrei arrombando o trinco a ponta pés. Tomei Clotildinha pelo braço e a pus para cavar com as unhas o chão, para enfim, conseguirmos tirar a sacola de tijolos por baixo da estátua de meu avô. Carregamos a sacola até a igrejinha do fim da rua. Dividíamos o peso da sacola, enquanto isso ela ria, contentíssima em poder, enfim, comer os tijolos. Chegando, Deus deixou meu corpo livre de sua possessão. Dei por mim que havia entregado meu alimento ao padre que, desconsiderando totalmente nossa fome. Arrastando a sacola pelo corredor da igreja, o padre, de joelhos, ofereceu a Deus os tijolos e agradeceu nossas vidas poupadas.

      O sino começava a soar mais alto agora. Pela janela da igreja víamos os animais começavam a se despir e subiam a escadaria sentido aos palácios das nuvens, coincidentemente minha avó passou voando feliz com seu amado rinoceronte. Estavam em busca de um tempinho mais agradável ao sul. Minha prima Clotildinha insinuava-se para mim. Dizia que nunca havia sido minha prima e acariciava meus testículos com a ponta dos dedos. O padre, não inoportuno, nos observava e masturbava-se. Nós desejávamos uns aos outros. Deus recolheu a sacola com os tijolos e os pôs debaixo de suas pernas para protegê-los. Olhou-nos bem, não sabia o que fazer conosco. Arremessou-nos ao mar para que morrêssemos afogados.

 

 

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