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"Bento do Bitucão" (Augusto Moraes)

               Bento não faria mais uso do tabaco e jurou. Jurou como se jura diante de uma cruz, com os pés juntos, joelhos firmes no chão e a palma da mão já única em prece. Quisera que a decisão tivesse como base o amor e não o acontecido, assim sendo não teríamos motivo para esta estória. Não que nosso personagem não cresse nas grandes transformações do amor, porém, nessa ocasião e somente nessa ocasião, não seria necessário o uso do seu poder místico, piteiras antitabagistas ou mesmo adesivos de nicotina.

Após o jantar, se podemos chamar àqueles grãos de jantar, quis agradar sua suposta visitante. Seria uma vergonha, com a casa naquele estado. Começou por varrer. O cinzento do chão parecia-se um cinzeiro e as pedrinhas caídas do chapisco das paredes confundiam-se com as bitucas espalhadas pelo chão. Para quem não sabe o que é bituca, desde já esclareço que nada mais é do que o nome dado pelos fumantes àquele restinho de tabaco apagado que fica largado com o filtro cheirando mal pelos cantos. Penteou os poucos fios de cabelo, escovou os poucos dentes e arretou a pouca postura. Arrumou a louça no armário e vestiu seu traje mais bonito, comprara-o há mais de vinte anos e por isso era curto. Disfarçava assim, com um esforço deslocando o ombro sentido ao pescoço e descendo bem a cintura da calça para que a barra chegasse ao calcanhar. O sapato escondia debaixo da cadeira em que sentava-se, os furos e as rugas.

          A demora de Estela cheirava na noite e silenciava tudo como se nada mais demorasse. Obviamente ela não mais viria ou chegaria a qualquer momento. Tirou os sapatos e deitou-se à cama. Enquanto esquecia-se de si em sono profundo o corpo tomava conta e por próprio cedia à um cigarro. Sonhava e enquanto sonhava sonambulizava com as mãos trêmulas. Essas levavam aos lábios ansiosos e amarelados o cigarro e também o fogo. O palito, nas labaredas parecia a vida das salamandras que atacavam em disparada na direção do fumo também ansioso. Um êxtase enchia o pulmão e aliviava. O corpo deixou-o em paz num sono horizontal com o cigarro aceso entre os dedos e quando acordou havia fumado até o cotovelo. Quero que fique claro que dormiu e sonhou, mas não foi em sonho que fumou até o cotovelo.

O cheiro de fumaça tomou toda a casa, contudo não ocasionou um incêndio, o braço queimado estava estirado fora do colchão. Demorou-se algumas horas olhando-se em chamas até que compreendesse a realidade: Não precisaria mais do tabaco, o braço aliviava a tensão por tempo indeterminado. Somente era incômodo o som, um som agudo que não soava como um sino mas sim como uma buzina ou uma sirene interminável, parecia vir de dentro de sua cabeça.

          Passaram-se semanas. Bento não dormia para não incendiar a casa, até tentou, mas não encontrava posição que não queimasse os lençóis e colocasse tudo em risco, então desistia. Não saia da casa, tinha vergonha do braço, ou medo de deboche ou gozações. Não banhava-se para que ainda não se apagasse, já que se assim acontecesse teria que voltar com os cigarros. Fedia. Não só ele como toda a casa. A neblina não o permitia enxergar dois passos à frente e, com a intenção de diminuir a fumaça, abriu a porta. Lá estava Estela, imóvel, congelada, com o dedo firme no interruptor da campainha. Bento forçou-lhe o braço e desapertou a campainha, instantaneamente o som da sirene ou buzina que parecia de dentro de sua cabeça parara.  Deixou-a perto da janela onde batia sol e no fim de alguns dias ela descongelou. Ao vê-lo pensou em debochar e quase riu, mas chorou quando lembrou-se da essência. Ele Justificou que não lhe era tão mal assim: Aquecia no frio, acendia o fogão, fazia função de lanterna na escuridão. Ela percebeu que o acontecido trazia boas novas, principalmente quando Bento jurou, como se jura diante de uma cruz, com os pés juntos, joelhos firmes no chão e a palma da mão já única em prece: Não faria mais o uso do tabaco. O jantar foi maravilhoso e fizeram amor quando o sol baixou. Estela foi embora, mas prometeu que voltaria no próximo fim de semana.

          Bento, se fosse destro, provavelmente teria fumado o braço direito e teria que acostumar seus afazeres à mão esquerda, contudo era canhoto e por isso fumou o braço esquerdo, tendo que acostumar-se com a mão direita. Escrever foi difícil; segurar os talheres quase impossível; escovar os dentes, quebrar um ovo, bater palmas foi um sacrifício terrível. Imaginem só, de um dia para o outro terem que trocar todos os hábitos para o outro lado do corpo? Em um desses dias, enquanto treinava trocar os canais do televisor, uma faísca atingiu-lhe no olho causando um sono repentino. Dormiu por quase uma semanas e só acordou no sábado com o som da campainha novamente disparado como uma sirene ou uma buzina. Viu-se com o braço apagado: Um Bitucão. Ouvia-se no fim da rua, próximo à igreja seus gemidos, desesperado. Havia jurado que não faria mais uso do tabaco. Estela já deve estar à porta congelada. Não poderia dar-lhe o desprazer… Seria necessário que acendesse ao outro braço. Assim o fez.

Bento do Bitucão

 

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