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"Frederico das Quinquilharias" 

(Augusto Moraes)

      Era dia de finados e as pessoas entravam na loja. Compravam aparelhos de celular ou geladeiras novas para o natal. A caminho dos cemitérios, levavam nas mãos, na grande maioria, flores das mais belas e cheirosas. Alguns de outras tribos levavam garrafas de pinga ou arroz. Inúmeros símbolos de inúmeras culturas. Depois, via os mesmos regressando e arrastando suas tristezas aos seus lares. Alguns rastejavam pra dentro da loja com a intenção de distrair o ânimo e no fim acabavam comprando celulares ou geladeiras novas para o natal.

 

     Como todos os outros vendedores, eu acreditava que exercia meu ofício. Apesar do desprezo dos clientes, eu me mantinha a postos para estabelecer contato. Percebi ao fundo do corredor central do piso térreo, com roupas de quem caminhou por todos os mundos, Frederico. Usava pendurado no pescoço as mais variadas quinquilharias, bugigangas e invenções. Devido ao peso de alguns objetos metálicos e seus excessos, sua postura era extremamente curvada. Ele passeava pelos corredores dos eletrodomésticos e acariciando-os com a ponta dos dedos sentia saudade ou zelava pelos tais. Sentia na textura as suas densidades. Seus olhos brancos notavam e fixavam-se na claridade que vinha do painel de tevês. Algo lhe atraia para a compra, eu supus. Até então, os vendedores estavam todos ocupados com seus respectivos clientes. Apostavam corrida. Quem fechasse a venda primeiro poderia atender ao próximo cliente que entrasse.

 

     Frederico, revirando as bugigangas, selecionou um binóculo que encaixava perfeitamente entre as sobrancelhas peladas e os ossos magros da maçã do rosto. Fechava na nuca por meio de fivelas. Assim podia enxergar. Devido as entradas de luz solar diferirem do olho humano, causava-lhe, de cores, um conceito falso ou de suas verdadeiras inexistências. Viu-me admirando sua exoticidade e naturalidade. Vinha em minha direção. Baixei a vista. Eu tremia como num assalto ou numa batida policial. A três centímetros de mim, de forma inconstante e brusca, voltou a cabeça para os televisores e os fotografou por uma espécie de moldura. Girou de volta o corpo para suas costas de maneira que se fosse um homem não estaria em pé.

A cartilha pedia que não fizéssemos distinção de clientela, por isso, não quis me aprofundar em descobrir que tipo de humanoide se tratava. Observava-o atentamente enquanto, de frente ao som ligado, na falta de mídia, colocou seu dedo anelar pela entrada u ésse bê. O som tocou a última música reproduzida.

 

     Eu já havia reparado na ponta de seus dedos, porém não havia reconhecido nada de muito surpreendente, apenas o fato de não possuir unhas, as unhas não pareciam ser úteis no “viver” moderno. Futucando as invenções, tirou debaixo do braço um utensilio fascinante que media a altura do som por decibéis exatos através de ondas provocadas num líquido viscoso que parecia vivo dentro do invento. A altura do som subia gradativamente sem qualquer movimento suspeito de alguém que o aumentara. O som do arrocha retumbava e poluía toda a cidade. Os vendedores sequer incomodavam-se, nem seus clientes ou qualquer passista da rua. Eu também não poderia me opor ao consentimento dos silenciosos. Eu tinha que tentar estabelecer o contato. Perguntei se podia ajudar e esperei ouvir o "só estou dando uma olhadinha", contudo ele me ignorou completamente. Pensei que talvez ele procurasse por um bom preço. Demonstrei todos os mais em conta. Acentuei que talvez procurasse novidades e apresentei os mais novos lançamentos.

 

     Frederico não mostrava o menor interesse nem em um e nem em outro. Ainda tirou uma foto minha com aquela moldurazinha ridícula. O deixei à vontade pra acariciar, fotografar e desfrutar de cada produto, pois era com certeza um caroço¹. Não qualquer tipo de caroço. Sabia mais sobre os produtos do que o próprio manual. Conectava um produto a outro, fazia e desfazia do uso de todos eles: batia milk shake nos liquidificadores; assava pães de queijo nos fornos elétricos; colocava os pés sobre as mesas para relaxar e, depois, colocava-os de volta nos tornozelos. Os vendedores já haviam fechado as vendas e mesmo assim faziam pouco de Frederico. Arrumavam suas coisas para descansar em casa e depois voltarem pela manhã.

 Fecharam a loja. Frederico ainda não havia saído e nem comprado. Eu não podia deixa-lo lá e ir para casa. O último vendedor saia da loja junto com o caixa e o gerente, mas antes desligou todos os televisores, exceto um de frente ao sofá onde Frederico aconchegava-se. Talvez, apenas o tivessem esquecido ligado ou não queriam mesmo gerar incômodo. As luzes já estavam apagadas e os alarmes de som e movimento ativados. Esperem! Não fechei a venda ainda! Os laseres desparadores faziam suas arapucas e eu esbarrava sem pudor. Parecia não funcionar. Eu ainda bati palmas próximo aos de som, mas nada. Nem sequer uma sirene ou qualquer outro tipo de alarme silencioso.

 

     Frederico fez desligar o televisor e segurando delicadamente os pés entre os dedos indicador e polegar, subiu as escadas para o piso dos dormitórios. Também sem disparar os alarmes, acomodou os pés na sapateira e a cabeça no cabideiro. Tirou de dentro do guarda-roupa uma espécie de pele limpa e tratada, macia como um pijama de linho nobre. Pensei que fosse vesti-la por cima da própria, porém desabotoou a pele suja e maltratada que vestia por baixo da de tecido e colocou também no cabideiro. Vestiu a pele de dormir e deitou-se. Percebendo o nosso carma, desfiz o lote de cobertores e o cobri como se faz com um filho e desejei boa noite. 

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