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"O relógio ou a maçã"  (Augusto Moraes)

Prólogo

Coisa que Mauro gostava mesmo, além de ir à igreja era ir à loja. Passava a maior parte do seu tempo observando os produtos. Só gastava dinheiro com dizimo e com a Morava sozinho. A última mulher que morara trocou-o por uma maçã. Por isso mesmo é que era apegado à loja. Lá, exceto quando não tinha dinheiro nenhum, era tratado como um rei.

17:37h

Dentro da loja, os vendedores, eram uns loucos. Enchiam-lhe os olhos. Davam-lhe água na boca. Tinham formas de incitar e apresentar espetacularmente cada produto. Davam-lhe o preço. O poder do “sente-se aqui” já tomara o corpo. A voz que dizia uma boa forma de pagamento não era exatamente ouvida. Penetrava os poros e, pelas veias, chegava ao límbico, direto, para que não houvesse qualquer tipo de raciocínio lógico. A compra sempre finalizava com um aperto de mãos.

18:42h

Mauro olhava para o relógio a todo o momento, feliz com a compra, sorria. Ainda não queria arrumá-lo com a hora, pelo menos enquanto não tivesse certeza da hora que fosse. Levou-o no pulso e antes de entrar pelo quintal, ao colocar a mão para abrir o portãozinho de madeira, notou algo de muito esquisito: O quintal por onde caminhava, sentido à casinha, estava cheio flores e passarinhos. A última vez que havia flores e passarinhos no quintal, sua ex-mulher havia voltado para casa. Mas não seria possível. Ela jurou que nunca mais poria os pés nesta casa. Com medo de encontra-la e de frente para a porta de entrada, abriu lentamente num toque de dedos. O ranger parecia anunciar um terror absurdo, todavia, nada e absolutamente nada, aconteceu.

Logo quando entrou também não houve qualquer tipo de surpresa. A sala parecia intacta, exatamente igual. Ela, provavelmente, se tivesse passado por lá teria usado o sofá. Experimentou, estava macio e gelado. No televisor, o volume e também a troca de canais por meio do controle remoto funcionava normalmente. Talvez ela pudesse estar tomando banho, pois as lâmpadas clareavam menos, como acontecia quando ela ia banhar-se, porém bastou desligar o televisor para que voltassem ao normal. Desistiu de crer que ela tivesse voltado ou que por um minuto houvesse passado por ali.

18:50h

A fim de ajustar o relógio novo esperou no radio a voz do Brasil. Foram os dez minutos mais longos de toda sua vida. Já havia preparado os ponteiros para as sete horas e, bastaria que o locutor anunciasse o título para que ele, enfim, pontualmente pudesse coloca-lo para funcionar.

19:00h

À sua esquerda havia a porta do quarto e a sua direita o corredor estreito que levava até a cozinha, foi lá, no corredor, após apertar o pino que dava inicio ao trabalho do relógio, que teve certeza que realmente havia algo de errado. Apesar de não chover há semanas e a casa nunca ter tido nenhum tipo de goteira ou mesmo um vazamento. Uma infiltração terrível escorria sem parar pela parede como uma cascata. Do corredor não escoava ou escorria para a sala ou mesmo para a cozinha, parecia encher somente o corredor. Hora ou outra alcançaria o teto. A água já na altura dos joelhos enquanto atravessava para a cozinha.

Já na cozinha, tudo mofando, digo mofando e não mofado. A pia pingava algo que parecia ser sangue, porém ao experimentar pôde reconhecer, apesar de mais aguado que o normal, o gosto de ketchup. Nos armários os alimentos emboloravam, com exceção de uma maçã, fruta que a igreja temia e ele nunca havia comprado. Sabia bem do significado e contrariando seus conceitos, desejava-a, ansiava o seu sabor nunca provado.

Na primeira dentada amoleceram-se os dentes, mesmo assim continuou mastigando, mastigando inclusive os dentes misturados à polpa do fruto. O sangue se precipitava pelos cantos da boca. Para aproveitar melhor lambia os lábios, não deixava escapar nenhuma gota. Sorrindo olhou de volta para o corredor e estava completamente cheio, lá ele podia se ver refletido. Não se reconhecia.

19:06h

Ali, tinha um mínimo de sessenta anos, a pele flácida, os ossos doloridos. Em um passo a coluna se realinhou, os ombros estalaram, os joelhos queriam se dobrar e bambeavam, a dor acompanhava cada minúscula tentativa de movimentar-se. Pôde notar o relógio, ainda novinho, brilhando. Girava e girava e girava, como se nos segundos se passassem anos; nos minutos, décadas; nas horas, séculos. Tentando tirá-lo do pulso, caia o corpo por cima dos joelhos.

19:20h

Dele, só havia as cinzas. O relógio estava parado e deixado ao chão. A casa estava intacta. A maçã sequer mordida no armário.

 

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